A floresta dos ossos
- Priscila Roseane
- 12 de mai. de 2022
- 5 min de leitura
Atualizado: 9 de jun. de 2022

Ninguém se lembrava mais quando as oferendas deixaram de ser depositadas ao redor das raízes do velho cedro que ficava no coração da floresta abandonada. A anciã do vilarejo contava histórias de sua infância, quando cestos fartos de tâmaras e mel, pães e vinho do verão eram deixados ali para aplacar a ira dos espíritos da floresta e favorecer as plantações de arroz e trigo.
Mas com o tempo as pessoas se esqueceram que arvore, a maior de toda da floresta, cujas folhas e galhos sobreviveram a centenas e centenas de primaveras, e guerras entre os homens e as criaturas magicas, estava ali, abandonando-a a solidão. Os presentes deixaram de ser ofertados e as crianças proibidas de entrar no bosque, que se tornou mais sombrio e escuro a cada estação.
Naquele ano a colheita fora escassa, a seca aniquilou os campos de arroz e a praga destruiu completamente todo o trigo. Ao cair da noite, estranhas criaturas eram vistas espreitando entre as arvores e seus urros faziam as pessoas tremerem de medo em suas camas. Os cidadãos começaram a desaparecer, primeiro o lenhador. Depois o caçador. E o pescador que, afogado, surgiu as margens do rio em uma manhã.
As crianças já não saiam de casa, pois também desapareciam se se aproximassem de mais da floresta. Pouco a pouco o vilarejo começou a perecer. Os que podiam fugiam às pressas, levando apenas o que podiam carregar, e os que permaneciam vivam com medo de serem as próximas vítimas.
Dizia-se que os espíritos da floresta estavam irados, exigindo retribuição por tudo que a terra lhes fornecia.
“Precisamos de um sacrifício.” Disse a anciã, certo dia, para que todos pudessem ouvir.
Assim, o pouco que vingara da colheita, todo pão, leite e mel foram levados até o velho cedro. Mas na manhã seguinte a filha de uma jovem esposa desapareceu enquanto colhia flores na estrada. Seu corpo foi encontrado ao entardecer, com todas as entranhas e os olhos devorados.
Confusos, os cidadãos procuraram a anciã, exigindo saber por que a oferenda não fora aceita.
“Os espíritos não aceitaram o pão, pois agora eles têm sede de sangue.” - Ela respondeu.
Depois de muito debaterem uns com os outros, o povo do vilarejo chegou à um consenso, decidindo presentear os espíritos com uma oferenda viva, levando até o antigo cedro uma jovem novilha.
No entanto, ao retornarem no dia seguinte, perceberam que o animal havia sido poupado, permanecendo amarrado no mesmo lugar ainda viva. Ao seu redor surgiram incontáveis ossos pertencentes aos cidadãos desaparecidos.
Desde então, uma vez a cada lua nova, outra pessoa desaparecia e seus ossos eram encontrados junto a pilha que crescia ao redor do cedro. O que havia das colheitas mingou de vez. As vacas emagreceram e pararam de produzir leite. As abelhas foram embora, afugentadas pelo miasma que crescia e se espalhava pelos arredores da floresta. Mais fortes e ousados, os espíritos saiam durante a noite e vagavam pelo vilarejo, perturbando o sono dos cidadãos, batendo-lhes a porta e sussurrando com vozes fantasmagóricas pelas ruas.
Atormentados e cada vez mais apavorados, os cidadãos tornaram a procurar a anciã, que deliberou uma terrível decisão, após ouvir os clamores dos espíritos.
“Uma vez a cada mês, quando a lua desaparecer do céu, um de nós deverá se oferecer aos espíritos da floresta de bom grado, só assim nosso vilarejo voltará a prosperar.”
Todavia, ainda que a solução parecesse a única coisa capaz de livra-los dos tormentos e da fúria da floresta, nenhum dos cidadãos se ofereceu para sacrificar-se pelos outros. Então a fome, a seca e as mortes continuaram crescer. Decidiram então entre si eleger uma oferenda. A filha do ferreiro, acusada como impura por ter se deitado com o marido de outra mulher, foi a primeira a ser apontada. Amaram-na e a levaram até o velho cedro.
Naquela noite seus gritos foram ouvidos por todo vilarejo. Mas, à sombra do sacrifício, as noites seguintes foram calmas e sem o constante lamento dos espíritos.
Porém, os terrores da floresta ainda pairavam sobre eles, de maneira que o ritual permaneceu a cada lua nova, entregando ao velho cedro um cidadão elegido pela maioria.
Aos poucos a seca cedeu lugar à chuva, que fez brotar a terra. As abelhas, atraídas pelas flores no campo, retornaram e agraciaram o vilarejo com o mel mais doce. As vacas, tendo pasto para se alimentar, voltaram a produzir o leite. E a anciã, contente pela prosperidade, parecia cada dia mais viva e rejuvenescida. A pele antes descarnada e enrugada sob os ossos, havia se esticado, os cabelos, brancos e emaranhados como teia de aranha, se tornaram novamente negros e brilhantes.
O povo tomou o acontecimento como um milagre concedido pelo cedro, cuja magia recobrou a saúde da anciã assim como fizera com a terra.
Todavia ela lhes alertou que a fome dos espíritos crescia a cada dia. Assim, quando a lua novamente minguou, dois ao invés de um sacrifício foram feitos. E o vilarejo continuou a prosperar e crescer. As mulheres, férteis como os campos, davam à luz a uma criança atrás da outra, e essas cresciam rápido com saúde e vigor em abundancia. Os homens aravam o solo com esperança, já que a terra lhes entregava com riqueza tudo que era plantado.
Até que um dia, a anciã, cada vez mais jovem e bela, por quem os homens tinham fascínio e as mulheres adoração, passara a se comportar de maneira estranha. Era vista cada vez com mais frequência vagueando pela floresta a noite e espreitando junto aos berços onde dormiam os bebês recém nascidos. Evitava a todo custo sair ao sol, empalidecendo como um cadáver, mas ainda assim conservado a beleza. Assustadores se tornaram seus olhos que agora pareciam os de uma víbora.
A próxima lua nova se aproximava e embora estivessem assustados com a aparência da anciã, o povo do vilarejo aguardava ansioso para que ela anunciasse quem seria a próxima oferenda.
Então, numa noite, ela saiu para fora de sua casa, que se tornara a mais rica graças aos presentes de seus adoradores, e gritou para que todos ouvissem:
“Todos os bebês devem ser levados e oferecidos aos espíritos da floresta, caso contrário eles despejaram sua fúria sob nós e o vilarejo voltara à miséria.”
Entretanto, apavorados com tamanha loucura, os cidadãos se recusaram a entregar as crianças, preferindo abandonar de vez o vilarejo a cumprir tal exigência cruel e correram de volta a suas casas.
Contrariada, a anciã berrou aos quatro ventos e já não era voz humana a que saia de seus lábios e sim um rugido animalesco e diabólico:
“Vocês pagarão com suas vidas por essa afronta!”
Naquela mesma noite, enquanto o povo se preparava para fugir, uma criatura grotesca surgiu da floresta, com membros esticados, garras afiadas e uma boca repleta de dentes. Tomada pela fome insaciável os caçou um por um antes que pudessem chegar à estrada. Todos os homens, mulheres e crianças, reduzindo o vilarejo inteiro a um campo de corpos dilacerados.
As histórias dizem que o cedro antigo continua lá, no fundo do bosque, onde ainda podem ser ouvidos os gritos daquele povo. E a criatura ainda vive nas ruinas do vilarejo. As vezes vestida na pele de uma bela mulher, atraindo caçadores e aventureiros para sua armadilha mortal. Noutras como uma bondosa velhinha, oferecendo seus conselhos aos desavisados e curiosos que por ali passarem.
Kommentarer