Certidão de nascimento
- Priscila Roseane
- 29 de ago. de 2022
- 4 min de leitura

Passei o fim de semana na casa do meu namorado. Depois de dois meses, ele havia decidido que deveríamos nos apresentar oficialmente para a família. Concordei, sem ter certeza se estávamos caminhando muito rápido, ou onde isso nos levaria. Já a algum tempo, devido a péssimas experiencia passadas e um sentimento de depravação de minha própria alma, não me julgava em posição de opinar sobre tais coisas. Ele fazia o tipo corrompido também, estragado por decepções imprevisíveis, aquelas que todos nós, ou pelo menos a maioria de nós, os menos favorecidos e consequentemente com menos sorte no amor, vivencia ao longo da juventude e que de alguma forma nos marca para o resto da vida. Todavia, eu era ainda mais descrente do que ele. Por isso, talvez, confiei em seu julgamento.
Aproveitamos o aniversario de sua mãe, quando a maioria dos tios, tias, primos e primas estariam reunidos, para tornar oficial o que, até então, compartilhávamos só entre nós dois. Minha sogra eu já conhecia o bastante para sentir certa afeição, devido inclusive à profunda semelhança física e psicológica que via entre ela e minha própria mãe. Gostava dela e evitava permitir que os juízos de valor que eu costumava sempre fazer das outras pessoas me impedissem de nutrir tal sentimento. Mas não podia deixar de culpa-la as vezes pelo desleixo do meu namorado, ou pela maneira irritantemente hiper protetora com a qual ela o tratava. Muitos dos defeitos dele, pensava eu, vinham daí, de sua mão extremamente leve. Como a de minha mãe.
Eu não era nenhuma novata no ritual de apresentação familiar, por isso não me permiti intimidar quando todos me viram entrar pela porta da cozinha. Com o tempo eu havia aprendido a ignorar a opinião alheia com tanta efetividade que isso se tornou um habito. Um segredo meu, é claro. Detestaria me passar por antipática, ainda que no fundo eu realmente fosse. Fiz cara de mulher cristã, como se as tatuagens pagãs no meu corpo não existissem e sorri como uma virgem. Essa parte, confesso, quando todos me olhavam com amorosidade e receptividade, sem saber o que estava por baixo da fantasia de menina inocente, sempre fora bastante divertida.
Durante muito tempo eu havia subestimado minha própria capacidade de dissimular, mas em momentos como esse a escamoteação de minha verdadeira personalidade simplesmente acontecia. Quer fosse por entretenimento, ou enfadonho, de ter que explicar coisas a meu respeito que simplesmente não me apeteciam discutir com estranhos, me permitia passar por uma versão mais simplória e doce. Me fazia até de submissa, quando necessário, o que rendia divertidas caras e bocas de quem realmente me conhecia. Não que não existisse dentro do meu ser fragmentos de todas essas características que, em tese, constituem uma mulher exemplar. Elas existiam, embora se manifestassem com mais frequência no âmbito sexual, onde eu realmente era todas elas: depravada, pagã, submissa, inocente, mas sob nenhum ponto de vista uma virgem e tampouco eclesiástica.
Seguimos casa a fora, cumprimentando os primos, filhos de primos e agregados, a quem eu sorria e fingia lembrar dos nomes. Chegamos a sala onde a matriarca da família, e talvez única pessoa além de minha sogra para quem minha dissimulação fizesse alguma diferença, estava sentada junto aos demais netos. Ela era uma coisinha encarquilhada e muito miúda, cujos cabelos, muito ralos e muito brancos, me lembravam tufos de feltro e algodão doce. Embora bastante debilitada ela se levantou para me receber e eu retribui o gesto a cumprimentado com um aperto de mão muito solene e um sorriso para lá de angelical. Neste ponto, talvez eu não estivesse apenas dissimulando. Não estava. Senti por ela o mesmo tipo de afeição que sentia pela filha, minha sogra e mãe do homem que eu amava. Afeição que era gratuita, genuína, sincera e justificável, ou seja, o tipo de afeição que eu sentia por todas as coisas muito machucadas pela vida, especialmente em se tratando de mulheres.
Logo a avó voltou a se sentar e começou a falar. Eu já havia sido prevenida sobre a desconexão de seu discurso, mas a achei bastante fofa e lucida para alguém com seus noventa e três anos de idade. Tinha então uma dócil senhorinha de cabelos de algodão doce e mãos tremulas que tagarelava histórias para mim. Como sempre acontecia quando me via diante de uma criatura tão honesta, fiquei imediatamente absorta em seu discurso, quer ele fosse inventivo e bastante anacrônico, o que as vezes me impedia de saber se ela falava de si mesma, dos filhos, ou dos netos. Ainda assim, escutei e respondi pacientemente a cada pergunta, mesmo quando já feitas antes, pois sentia nela uma necessidade imensa de se fazer ouvir. Parecia haver por trás da fala lenta e narrativa repetitiva algo que se assemelhava ao meu habito dissimulatório. Talvez e principalmente quando esta inocente avó deixou escapar que em sua certidão de nascimento constava a data errada, o que, segundo ela, lhe concedia idade de oitenta e nove anos e não noventa e três como dizia na certidão.
Terminamos o encontro com elogios e mais apertos de mão. Seus olhinhos lacrimejantes e quase infantis, me agradeciam em silencio a atenção que durante aquelas poucas horas dediquei em ouvi-la. Depois refizemos o caminho até a porta da cozinha, nos despedindo dos demais parentes, para os quais eu sorria como a boa menina cristã que não era. E ao sair fiz troça com minha própria sanidade mental, comparando-a a avó, já que tinha pouco mais de um quarto de sua idade, mas não tanta vantagem assim no que tocava à lucidez. Então nos abraçamos mais forte e saímos para a belíssima noite de primavera que fazia lá fora.
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